Como nos foi dada a tarefa de pensarmos em
alguma paisagem na qual pudéssemos realizar uma investigação fenomenológica
sobre sua natureza, sobre suas qualidades, sugerimos a análise de uma estação
de transbordo: a Estação da Lapa. Esta
escolha se justifica pelo fato de esta estação ser um espaço para onde
convergem, diariamente, milhares de pessoas que não o utilizam apenas como
local de passagem, permanecendo nesta área por vezes em porções de tempo
bastante alongadas. Pensando em todo o referencial teórico com o qual
trabalhamos neste texto, na teoria e nos métodos propostos pelos quatro
filósofos que lemos, acreditamos que seria possível analisar a qualidade desta
estação de transbordo tanto para os usuários que a utilizam de modo mais
fluido, mais efêmero, bem como para aqueles que trabalham nesta área e que lá
permanecem o dia inteiro. Diante dos diferentes métodos propostos pelos quatro
autores, acreditamos que a fenomenologia da percepção e os métodos do
Merleau-Ponty nos ajudariam mais nesta análise. Pensando que podíamos nos valer
da diversidade de percepção sensitiva que nosso corpo dispõe para analisar de
que forma a paisagem desta estação de transbordo “fala” aos nossos sentidos, a
que ela nos remete e como podemos imaginar outras possibilidades de paisagens
para esta área de interesse coletivo, seguimos para esta estação a fim de
encontrarmos algumas pessoas que pudessem nos ajudar a compreender tal
paisagem. Relatamos a partir de agora a nossa experiência:
Estação da Lapa, sexta-feira, 21 de novembro
de 2008, às 11:30h.
Primeiras impressões:
A manhã estava chuvosa, a cidade estava
calma, um dia atípico, parecia feriado. A estação da Lapa estava “tranquila”
apesar do horário. O fluxo de pessoas e ônibus era bem menor do que de costume
nesse horário, porém o ir e vir apressado e aparentemente desencontrado das
pessoas se fazia presente.
Tiramos algumas fotos da
Estação:
A manhã estava chuvosa, a
cidade estava calma, um dia atípico, parecia feriado. A estação da Lapa estava
“tranquila” apesar do horário. O fluxo de pessoas e ônibus era bem menor do que
de costume nesse horário, porém o ir e vir apressado e aparentemente
desencontrado das pessoas se fazia presente.
Tiramos algumas fotos da
Estação:
1. Área de maior
concentração das lanchonetes: tinha um número considerável de pessoas lanchando
apressadamente, outros pareciam contemplar a paisagem urbana procurando forças
para seguir em frente, muitos conversavam e alguns trabalhavam em ritmo
frenético. Alguns com olhares desconfiados nos fitavam a todo o momento e
algumas vezes ficamos desconfiados e com certo medo de nos roubarem a máquina
fotográfica, muito por conta do aviso de uma senhora que observava atenta ao
movimento, e que nos alertou: “cuidado, tem muito pivete, ladrão por aqui”. Mas
insistimos, não sabemos se pela curiosidade ou pela imprudência e continuamos a
fotografar. Ainda nesse pavimento, porém fora da área das lanchonetes, o
movimento era constante, o mau cheiro era forte na área dos sanitários, o
cheiro era forte e desagradável.
2. Primeiro pavimento:
Descemos para o andar de baixo, onde chegam e partem os ônibus,
realmente estava um dia estranho, obscuro... Tiramos algumas fotos e também
fomos bastante observados (Figura 01).
Figura 01. Visão parcial das lanchonetes e primeiro pavimento
da estação da Lapa. Fonte: acervo dos autores.
3. Subsolo: Descemos para o
subsolo... O ambiente era péssimo, sujo, úmido, abafado... Tiramos ainda
algumas fotos e filmamos também (Figura 02).
O encontro com os garotos:
Voltando para o pavimento superior,
na área das lanchonetes, encontramos um grupo de jovens estudantes, na faixa
entre 15 e 17 anos, do Colégio Central da Bahia, que estavam conversando.
Aproximamos-nos e puxamos conversa com eles. A princípio nos olharam com aquela
cara de: “o que é que eles querem por aqui? Deve ser alguma chatice!”. Achamos
melhor ignorar a nossa leitura momentânea e continuar o trabalho.
Nosso diálogo se deu mais ou
menos assim:
Voltando para o pavimento superior, na área
das lanchonetes, encontramos um grupo de jovens estudantes, na faixa entre 15 e
17 anos, do Colégio Central da Bahia, que estavam conversando. Aproximamos-nos
e puxamos conversa com eles. A princípio nos olharam com aquela cara de: “o que
é que eles querem por aqui? Deve ser alguma chatice!”. Achamos melhor ignorar a
nossa leitura momentânea e continuar o trabalho.
Nosso diálogo se deu mais ou menos assim:
- Olá, tudo bem? Vocês são do Colégio Central?
- Somos.
- Legal. E pegam ônibus todo dia aqui na Lapa?
- É.
- Bem, nós não frequentamos muito
aqui e precisamos entender como isso aqui funciona, será que vocês poderiam nos
ajudar?
- Depende. É o que? De
onde vocês são?
- Nós somos da UFBA e queremos saber o que
vocês acham daqui?
Começamos a anotar e as respostas foram
coletivas, ou melhor, não nos preocupamos em anotar as respostas
individualmente.
- Aqui é massa, é da hora, a gente vem pra cá
na hora que acaba a aula, a galera se junta pra ficar zoando, comendo, fazendo
hora pra ir pra casa... ou pro trabalho...
- (Simone)
Se eu pedisse pra vocês fazerem uma descrição daqui pra mandar pra uma pessoa
que nunca veio aqui. Como vocês descreveriam?
- A
Lapa é massa, é o bicho... Tem gente pá porra, o tempo todo. É colado com o Piedade
(shopping), perto do Colégio, perto da cidade toda. Num para não. Tem três
andares... Esse aqui, o de baixo, e o outro lá.
- Que
mais?
-
Tem aqui as lanchonetes, é da hora.
- E
quando o metrô começar a funcionar?(o projeto de metrô passa pela estação).
-
ÔÔÔÔÔÔ... Pelo visto vai demorar... Nem sei! Deve ficar melhor, né?
- Se
vedássemos os olhos de um de vocês e andássemos por aqui, pela estação, o que
será que ia mudar? Vocês só teriam os outros sentidos... Audição, olfato,
paladar, tato, etc.
-
Oxi? Como é isso?
- Como
se vocês de repente ficassem cegos. (Contamos a nossa experiência no Parque
da Cidade, no bairro do Itaigara).
- Oxi, lá na faculdade vocês
brincam de cabra-cega, é?
Todos rimos.
- Vamos
tentar?
Ficaram
todos rindo e um jogando para o outro. Demos uma incentivada e a garota F. de
16 anos topou. Explicamos como seria a “brincadeira”, vedamos os olhos dela e
começamos. A turma toda acompanhou na maior agitação. Quem a guiou foi C. 16
anos. Nós observamos e acompanhamos. C. a
rodou, andou pela rampa de acesso ao shopping Piedade, voltou para a estação e
parou em frente a uma livraria Sebo. Durante o percurso ela demonstrou um pouco
de medo, mas logo confiou na colega. Durante o percurso falou que tinha a
sensação de estar todo mundo olhando pra ela, que estava “pagando o maior
mico”. Quando C. parou, ela começou a falar:
- Ai meu
Deus, tem muita gente andando, ta todo mundo me olhando, tem cheiro de mofo
aqui. Que banheiro
fedido. Tem um homem vendendo cartão de telefone. Acho que estou perto dessa
ladeira que desce, que dá aqui na Lapa. Essa do lado do Piedade. Tem muita
zoada... Um povo gritando lá longe... Pra vender. Eu não vou pegar em nada
não... Parece que ta tudo sujo... Posso tirar isso? Não gostei não, esse
negocio de ficar cego, Deus é mais...
Nos todos pedimos pra
ela continuar, mas ela estava com medo de cair, de pegar em alguma coisa suja,
de ser “atropelada” pelas pessoas. Nós a questionamos:
- Mas você não conhece a Lapa? Não
vem todo dia aqui? Sobe e desce as escadas, vai para as lanchonetes?
- Mas de olho fechado
nem sei sair daqui...
C. a levou para
frente do sanitário...
- Jesus! Que carniça!
Pra onde tu ta me levando? Quero mais não!!!
Ao tirar a venda, F.
se admirou por não ter se afastando tanto do lugar onde ela estava e lembrou
que nem tinha descido a escada. Pedimos
para mais alguém tentar. Dessa vez foi a garota J. que aceitou. J. tem 16 anos
e também foi conduzida por F. que dizia que ia “se vingar”.
- Jesus ascende à
luz!
Todos riram. F.
circulou com J., desceu a escada rolante. Foi o maior problema porque teve
muito medo de cair. F. teve a ajuda de um colega da turma.
- Meu Deus, como é
que cego consegue andar? Vixi que beco! (se referindo a escada rolante, que é
bem estreita, ela parecia saber para onde estava indo).
F. deu várias voltas
e subiu a metade da escada de cimento, andou até a outra extremidade e desceu
novamente. Parece ter sido o suficiente para J. não saber mais onde estava.
- Tem muita gente
aqui, barulho de carro, ônibus. Eu não sei se to em cima ou lá em baixão. Ta
abafado... um cheiro bem ruim. Tem muita zoada, eu não to escutando nada!!! Dá
medo mesmo porque a gente não sabe pra onde vai e onde ta... Tem gente vendendo
coisas ali... Nem dá pra ouvir a zoada da cidade! Nem sei para que lado ela ta! Tem um menino chorando, alguém
perguntando de ônibus, uma confusão!
F. resolveu subir as
escadas novamente (de cimento). Ao pegar no corrimão J. falou:
- Que nojo, que ferro
grudento...
F. foi com ela até a
lanchonete e durante o percurso teve as mesmas sensações de Fabiana.
- Ta todo mundo me
olhando, né? Ave Maria! Dá até medo de andar... Parece que vou bater em todo
mundo... Vai devagar! Pra onde eu to indo? Gente, que cheiro de gordura... Eu
vou ficar podre de gordura... Meu cabelo vai ficar fedendo... Fede muito! Esse
cheiro é muito forte de gordura, eu to ficando enjoada. Eu to onde?
Ao tirar a venda, J.
nem acreditou que estava onde costuma ficar todos os dias, e que às vezes
lanchava também. Comentou que adorou a experiência, mas sentiu um pouco de medo
porque não sabia onde estava, mas também sabia que nada ia acontecer, pois
estávamos com ela. Disse que achava tudo “muito louco”, que parecia não
conhecer aquele lugar e que a zoada não deixava “ver” outras coisas.
G., 17 anos,
influenciado pelos meninos, resolveu experimentar. Foi conduzido por um garoto
o qual não registramos o nome. O garoto que o conduziu o levou para fora da
Lapa desceu uma rapa até o shopping Piedade, subiu a escada rolante e desceu a
rampa que dá acesso à estação da Lapa, andou até a escada central, desceu,
circulou pelos pontos de ônibus, fez G. passar por baixo de uma barra de ferro
que separa o ponto da pista.
- Já sei vocês tão me levando... Pro
metrô, né? (G. reclamou porque a “brincadeira” era pra fazer dentro da
Estação da Lapa).
- Já to tonto... Anda
devagar seu porra!!! Vou lhe dá uma broca, viu!
O garoto desceu para
o subsolo pela escada de cimento e no último degrau pediu para G. se abaixar
para não bater a cabeça (sendo que não havia obstáculos).
- Pô velho, ó a
brincadeira... tem rato aqui não, né? Professora, a senhora ta aí? Isso é o
esgoto, né? Posso ficar em pé?
- Rapaz, isso aqui ta doido, ta
molhado, um cheiro de mofo, um cheiro de “rabugem de cachorro molhado”.
- Uma zoada retada.
Não tem vento... É abafado, quente, quero sair daqui! Que viagem!
Pedimos calma a ele e
que nos descrevesse suas sensações durante aquele passeio. Ele falou o
seguinte:
- Rapaz... Acho que todo mundo ta
olhando.
- Muita gente passando.
- Tinha gente correndo.
- O cheiro é brabo!
- No início estava mais fresco, depois
ficou quente e depois mais quente e escuro... No começo não fedia tanto, mas
teve uma parte que acho que foi o banheiro... Tava podre.
- Tava mais escuro
ainda e abafado... Parece um tubo grande de esgoto... e essa zoada?!
Durante o período que
esteve no subsolo, G. permaneceu abaixado e não se mexeu pra não tocar em nada.
Ficou tão preso à idéia de estar num esgoto que não se deu conta do movimento
que estava em volta. Só ao final foi que nós dissemos a ele que podia ficar de
pé, e que ele então percebeu o som mais próximo dos ônibus, das pessoas. Quando
retirou a venda e viu que estava no subsolo, ficou bastante surpreso.
Voltamos para o
primeiro piso e durante o percurso, em meio as brincadeira eles colocaram
coisas como:
- É diferente mesmo... Sem ta vendo é
bem difícil!
- Parece que é mais sujo.
- Dá medo porque a
gente não sabe pra onde está indo.
Os garotos se
mostravam bastante surpresos, dizendo não entender como os cegos conseguem
andar sozinhos (há uma escola de cegos próxima a estação da Lapa).
Diziam também que a
Estação da Lapa é ótima, que gostam muito do local, mas que precisa melhorar
muita coisa ainda por lá. Chamavam nossa atenção para o fato de ter muito roubo
e que a noite é bem mais perigosa.
Sobre a construção do
futuro metrô, acham que este pode melhorar ou piorar as coisas na Lapa,
dependendo das ações que o governo irá implementar em toda a área.
- Tudo ficou mais
forte. (Repetiu mais uma vez um dos garotos)
Conversamos um pouco mais com os garotos
ao passo que nos despedíamos e íamos embora.
Simone Maria Santos Costa
Turismóloga,
Mestranda em Geografia pela UFBA Bolsista
CNPq orientada pelo Prof. Wendel Henrique,
Membro do Grupo de
Pesquisa CiTePlan – Cidade, Território e Planejamento (UFBA) End.: Alameda Filemon Andrade, 97, Ed. Serra
do Garcia, Ap. 902B,
Garcia, Salvador